quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Delírios viscerais




A presença de um vaso de vísceras feito para o funcionário
Iunefer, que está exposto na galeria de arte egípcia do Museu
Calouste Gulbenkian, onde ficará até ao mês de abril de 2023
por empréstimo da Ny Carlsberg Glyptotek, permite recordar
que no nosso país existem treze vasos de vísceras em acervos
públicos e privados, dois dos quais estão em Vila Viçosa, que
já foram estudados e publicados num catálogo apropriado.

Mas eis que o egiptólogo brasileiro Ronaldo Gurgel Pereira,
docente da Universidade Nova de Lisboa (FCSH), observou
com perscrutadora minudência os vasos referidos para deles
fazer uma nova e «melhor» leitura, tendo inserido na página
238 de uma gramática que publicou a sua versão, que acima
se reproduz, com um texto diferente do que está no original
do vaso que se vê na primeira foto (mas que aqui não se lê).

Quanto ao vaso de vísceras que está em baixo, encontra-se
no Museu da Farmácia e neste o texto vê-se bem, tendo por
três vezes o hieróglifo sa (signo V16 de Alan Gardiner, que 
até os alunos de Escrita Hieroglífica bem conhecem, o qual
tem o sentido de proteção, ou o verbo proteger), e também
ele está presente no vaso de vísceras de Vila Viçosa, com a
sua típica tampa de cabeça de falcão (deus Kebehsenuef). 

Ao lado do vaso do Museu da Farmácia, eis duas inscrições
hieroglíficas: uma manuscrita, feita há trinta anos, aquando
do estudo do acervo de Vila Viçosa, tendo ao lado um texto
feito em computador, da mesma inscrição, ambas iniciando
a fórmula com o hieróglifo sa com o sentido de proteção ou
o verbo proteger. Compare-se com a tradução do egiptólogo
brasileiro e a proposta exordial, despropositada e delirante.

Donde se conclui que não basta ir a um dicionário de egípcio
para caçar palavras ou signos mais ou menos parecidos, pois
convém ter alguns conhecimentos (pelo menos, os mínimos)
quanto à semântica profilática amiúde presente nos textos de
vasos de vísceras o que implica conhecer e observar dezenas
de exemplares de vasos de muitas coleções estrangeiras que
estão publicados em catálogos (nas bibliotecas e museus).

Note-se que em nenhuma fórmula de qualquer vaso visceral
se lê a frase «criada» pelo egiptólogo da Universidade Nova
dizendo «Este é o bom vaso» e nunca se viu o cargo de hem
-netjer como «o bom sacerdote», é apenas sacerdote, não se
podem inventar coisas! Ainda por cima as notas que o autor 
incluiu no texto que acima se reproduz remetem os leitores 
para «explicações» em rodapé que não esclarecem nada. 

1 comentário:

  1. Em qualquer dicionário, por exemplo, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, percebemos que o s. m. «filólogo» significa «Homem versado em Filologia; o que estuda a linguagem» (vol. III, 91). Contudo, é necessário consultar um dicionário etimológico, como o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do mesmo autor, para percebermos que a palavra de origem grega philólogos, para além desse sentido, quer também dizer «que gosta de falar; daí que fala muito; tagarela, que tem a língua solta (como efeito do vinho)» (vol. III, 51) e, neste caso, só diz disparates.

    Comentário enviado pelo egiptólogo Telo Ferreira Canhão.

    ResponderEliminar