Somos um grupo de amigos entusiastas do Antigo Egipto
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
No princípio era o Verbo
Para os antigos egípcios, o deus Ptah criou o mundo pela palavra. Na Bíblia também «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele (João 1:1-3)».
Nesta bela imagem, que a Teresa irá fazer o favor de a localizar, temos o deus cultuado primeiramente na zona de Mênfis, Ptah (que se lê: Ptarrr), e que aparece em pose mumiforme tal como Osíris ou Min. Tem neste caso o ceptro "uase" (prosperidade). Um pormenor bem engraçado, tem a ver com o faraó que está a agarrar numa pega com aspecto de um pequeno braço.
Sim, sim...Jorge, obrigada pela «lição»...esta imagem está em Abido! Acresce que o deus Ptah surge representado dentro do santuário Menfita e que se apresenta com uma calote esférica, que ajuda a identificá-lo...pelo menos a esta escriba ;)
O espírito de contagiante vivacidade e de alegre bonomia do nosso escriba Jorge Mateus está bem expresso nesta interessante questão que nos coloca, acompanhada de um riso provocatório e continuado (hehehehe). O Paulo ri-se aqui no blogue de uma forma mais sincopada (he he he)...
A verdade é que na Bíblia não se faz referência à forma de criação protagonizada por Atum, que se masturbou em Heliópolis para, num sublime esforço divino, criar o mundo e formar a Enéade, e que é a modalidade demiúrgica mais antiga no Egipto.
É que os textos bíblicos referentes à criação têm uma redacção mais tardia, com influências egípcias e babilónias, e certamente nunca passou pela cabeça dos letrados e sacerdotes hebraicos imaginar Iavé em semelhantes propósitos - para a Bíblia no princípio era o verbo.
Mas a questão também tem aqui a sua vertente político-ideológica: os sacerdotes de Ptah, que era cultuado em Mênfis (Ieneb-hedj), colocaram o seu demiurgo a falar, usando o coração e a língua, para assim poder criar a Enéade e, por ela, o resto do mundo, afirmando que esses elementos correspondiam ao sémen e às mãos de Atum. Mênfis queria suplantar Heliópolis com a sua primordialidade criacional.
Entretanto note-se que o deus Ptah é facilmente reconhecido pelo envoltório branco que o manieta naquela pose estática, e com as mãos irrompendo para segurarem o ceptro uase (prosperidade). Tem a cabeça coberta por uma calote e, coisa invulgar, tem o rosto pintado de escuro, a pêra divina e altas plumas sobre a cabeça.
A explicação é a seguinte: é que esta imagem de Ptah, que está dentro do seu santuário, cuja porta está a ser aberta pelo rei Seti I, foi esculpida no templo de Abido, onde a Teresa a viu e fotografou com a qualidade que se vê nas cores ainda vivas. Ora como esse templo era um cenotáfio, isto é, um espaço de culto funerário e evocativo de Seti I, Ptah aparece aqui com características de divindade relacionada com o culto dos mortos.
Mas Ptah era um deus criador, vocacionado para outras tarefas ligadas à vida e não à morte. Por isso foi ali associado a Sokar, deus cemiterial da necrópole menfita (cuja identificação são as altas plumas), e a Osíris, deus da eternidade (cuja identificação é a pele escura e a pêra divina).
Neste caso podemos falar então de uma divindade sincrética que Seti I se prepara para venerar depois de ter aberto a porta do santuário: são três deuses num só, Ptah-Sokar-Osíris. E a partir do Império Novo são conhecidas muitas estatuetas de Ptah-Sokar-Osíris: existem duas no Museu Nacional de Arqueologia e outra no Museu de História Natural da Universidade do Porto.
E vendo esta divindade sincrética, que reúne em si as capacidades de cada uma das três, percebemos a chave para a leitura da imagem divina: é que Ptah é a criação, Sokar a morte e Osíris a ressurreição - fica assim o ciclo completo, bem testemunhado nesta imagem do templo de Abido.
Associação muito pertinente. Parabéns à Teresa. Seria interessante perceber que tipo de associação os bíblicos fariam a Atum, o 1º demiurgo. hehehehe
ResponderEliminarNesta bela imagem, que a Teresa irá fazer o favor de a localizar, temos o deus cultuado primeiramente na zona de Mênfis, Ptah (que se lê: Ptarrr), e que aparece em pose mumiforme tal como Osíris ou Min. Tem neste caso o ceptro "uase" (prosperidade). Um pormenor bem engraçado, tem a ver com o faraó que está a agarrar numa pega com aspecto de um pequeno braço.
ResponderEliminarSim, sim...Jorge, obrigada pela «lição»...esta imagem está em Abido!
ResponderEliminarAcresce que o deus Ptah surge representado dentro do santuário Menfita e que se apresenta com uma calote esférica, que ajuda a identificá-lo...pelo menos a esta escriba ;)
O espírito de contagiante vivacidade e de alegre bonomia do nosso escriba Jorge Mateus está bem expresso nesta interessante questão que nos coloca, acompanhada de um riso provocatório e continuado (hehehehe). O Paulo ri-se aqui no blogue de uma forma mais sincopada (he he he)...
ResponderEliminarA verdade é que na Bíblia não se faz referência à forma de criação protagonizada por Atum, que se masturbou em Heliópolis para, num sublime esforço divino, criar o mundo e formar a Enéade, e que é a modalidade demiúrgica mais antiga no Egipto.
É que os textos bíblicos referentes à criação têm uma redacção mais tardia, com influências egípcias e babilónias, e certamente nunca passou pela cabeça dos letrados e sacerdotes hebraicos imaginar Iavé em semelhantes propósitos - para a Bíblia no princípio era o verbo.
Mas a questão também tem aqui a sua vertente político-ideológica: os sacerdotes de Ptah, que era cultuado em Mênfis (Ieneb-hedj), colocaram o seu demiurgo a falar, usando o coração e a língua, para assim poder criar a Enéade e, por ela, o resto do mundo, afirmando que esses elementos correspondiam ao sémen e às mãos de Atum. Mênfis queria suplantar Heliópolis com a sua primordialidade criacional.
Entretanto note-se que o deus Ptah é facilmente reconhecido pelo envoltório branco que o manieta naquela pose estática, e com as mãos irrompendo para segurarem o ceptro uase (prosperidade). Tem a cabeça coberta por uma calote e, coisa invulgar, tem o rosto pintado de escuro, a pêra divina e altas plumas sobre a cabeça.
A explicação é a seguinte: é que esta imagem de Ptah, que está dentro do seu santuário, cuja porta está a ser aberta pelo rei Seti I, foi esculpida no templo de Abido, onde a Teresa a viu e fotografou com a qualidade que se vê nas cores ainda vivas. Ora como esse templo era um cenotáfio, isto é, um espaço de culto funerário e evocativo de Seti I, Ptah aparece aqui com características de divindade relacionada com o culto dos mortos.
Mas Ptah era um deus criador, vocacionado para outras tarefas ligadas à vida e não à morte. Por isso foi ali associado a Sokar, deus cemiterial da necrópole menfita (cuja identificação são as altas plumas), e a Osíris, deus da eternidade (cuja identificação é a pele escura e a pêra divina).
Neste caso podemos falar então de uma divindade sincrética que Seti I se prepara para venerar depois de ter aberto a porta do santuário: são três deuses num só, Ptah-Sokar-Osíris. E a partir do Império Novo são conhecidas muitas estatuetas de Ptah-Sokar-Osíris: existem duas no Museu Nacional de Arqueologia e outra no Museu de História Natural da Universidade do Porto.
E vendo esta divindade sincrética, que reúne em si as capacidades de cada uma das três, percebemos a chave para a leitura da imagem divina: é que Ptah é a criação, Sokar a morte e Osíris a ressurreição - fica assim o ciclo completo, bem testemunhado nesta imagem do templo de Abido.