quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Para uma aproximação ao conceito de tempo no antigo Egipto


In “O Tempo no mundo do Além Egípcio”, Erik Hornung, CADMO nº 11

O desejo de obtenção de mais tempo é um tema antigo e universal. Duas histórias do Antigo Egipto falam-nos acerca desse interesse. Uma é recontada por Plutarco no De Iside, cap. 12:

“Diz-se que quando Rhea (Nut), secretamente, fez amor com Kronos (Geb), Helios (Ré) veio a saber e impôs-lhe uma maldição, pela qual ela não poderia conceber em qualquer dos meses do ano. Então Hermes (Tot), tendo-se apaixonado pela deusa... jogou ao senet contra Selene (Lua). Ganhou a septuagésima parte da sua luminosidade e, tendo tirado 5 dias ao total dos seus ganhos, acrescentou-os aos 360...(360:70=5,1..) Nesses dias celebram-se os aniversários dos deuses”.

A narrativa pretende explicar o significado dos dias epagómenos, mas o jogo de senet diz respeito à passagem dos defuntos pelo Além e portanto com o domínio dos mortos. As representações tiradas do Livro dos Mortos cap. 17, encontradas em muitos túmulos do Império Novo, incluem um jogo de senet. De acordo com Heródoto (II 122), o ainda vivo rei Rhampsinit desceu ao Além para jogar contra Demeter que é a Isis egípcia. Por conseguinte podemos estar seguros que Hermes (Tot) obtém do Além o tempo adicional de que necessita. Uma outra história confirma a presente.

O texto foi publicado por Georges Posener que que deu o nome de Papyrus Vandier ao manuscrito (meados do primeiro milénio aC) para honrar o anterior conservador do Departamento Egípcio do Louvre. A história é conhecida como “O Conto de Meriré e do Rei Sisobek”. Trata-se de um mágico (Meriré) que desce ao Além para pedir mais tempo para o seu rei Sisobek que tinha sido ameaçado com um atentado. No Além Meriré é recebido por Hathor que o leva à presença do “Grande Deus Vivo” Osíris. Parece ter sido bem sucedido, com um ganho de 100 anos de vida para o Faraó, mas a troco de grandes riscos para ele próprio, tendo de permanecer por longo tempo no Além.

Há ainda várias citações do Livro dos Mortos tais como a admirável formulação de pedido de tempo no cap.71 e o final do cap. 62 onde o defunto afirma que lhe pertence “tempo sem limites” uma vez que é Neheh (herdeiro do tempo) a quem foi oferecida a Djet (eternidade). É ainda conhecida a história de Uenamon que aconselha o príncipe de Biblos a enviar a madeira que ele pediu para o Egipto e a pedir a Amon 50 anos extra de vida (conforme o hino de Leiden, Amon pode alongar ou encurtar o tempo de vida). Também Ramsés III quando afirma que “Amon é o maior dos deuses“ está a pensar no tempo como Neheh e Djet

A “Vida de Ré” é o maior horizonte possível do tempo, sendo idêntica à duração total do ser. A sua vida “é maior que o Ocidente que esconde as suas imagens” acentua a 13ª invocação da Litania de Ré, o que quer dizer que ultrapassa a “eternidade” do outro mundo, já que o Ocidente é o domínio dos mortos. E o tempo depois da morte é tão duradouro que é idêntico à duração do ser, até o céu e a terra se unirem de novo. “Milhões de anos” são prometidos pelos deuses para esta durabilidade, ou seja “os anos de Atum”, o deus demiurgo, abrangendo toda a existência do Universo.

Uma medida específica do tempo é o festival Sed, o assim chamado “jubileu” do Faraó (...)

Os termos egípcios Neheh e Djet têm sido muito discutidos nos últimos anos. São muitas vezes traduzidos por “eternidade” mas este não é um conceito egípcio. Parece que juntos definem toda a extensão do tempo, os “milhões de anos” ou “milhões de festivais Sed”, mencionados em tantos textos, especialmente em desejos para o rei. E como mostrou Assman, provavelmente significam dois aspectos diferentes do tempo, um dinâmico e outro estático, continuidade e descontinuidade. É significativo que os Livros do Além no Império Novo tentem muitas vezes definir tempo como uma dualidade; estes livros, que descrevem a jornada do sol ao longo das 12 horas da noite, são uma fonte importante para a compreensão do conceito egípcio de tempo.

Em cada hora da sua jornada nocturna o deus Sol descansa “uma vida inteira” na região da hora. Por consequência cada hora no Além corresponde a um tempo de vida completo (aha’u) na terra. Que os juízes dos mortos considerem uma vida inteira como uma simples hora já era enfatizado pela instrução do rei Merikaré.

Assim, para além da morte, o tempo tem uma natureza diferente, e é mesmo possível uma inversão do tempo, já que o Sol tem que viajar no sentido contrário em tempo e espaço, para nascer novamente no Oriente. A 12ª e última hora da Amduat demonstra como o deus Sol e seus seguidores, incluindo todos os mortos abençoados, passam a serpente do rejuvenescimento em sentido “errado”, da cauda para a cabeça, e desse modo se tornam jovens de novo. Os defuntos não estão a caminho da eternidade, permanecem dentro do tempo e assim podem partilhar uma nova vida no Além.

Na 5ª hora do Livro das Portas, uma enorme serpente equipada com hieróglifos para a “vida inteira” simboliza 12 deuses que “transportam o tempo de vida no Ocidente”. O corpo da serpente representa o inesgotável fornecimento de tempo presente no Além, e a noção egípcia de dualidade no tempo é enfatizada ao apelidá-la Metuy “corda gémea”; cada tempo de vida limitado é “medido” nesta corda. Os mortos são acordados diariamente pela criativa palavra do deus Sol para efeitos de duração da sua vida renovada, levantando-se dos seus esquifes e aceitando tudo o que necessitam doravante.

Várias outras cenas no Livro das Portas tentam clarificar esta noção de tempo, seja na forma de uma serpente ou de uma corda dupla retorcida (de novo a dualidade), corda sem fim, fiada na garganta de um deus chamado Aqen que assim defende o insondável abismo do tempo onde “nascem” para serem engolidas de novo cada uma das horas; estas horas são representadas como estrelas, ou como figuras femininas, as deusas das horas. Como estrelas aparecem na figura 49 onde a corda do tempo é chamada “A devoradora que produz as horas”. Quer a corda quer o corpo da serpente mostram a continuidade do tempo, (...)

Num posterior livro ilustrado, o “Livro da Terra” o tempo é representado por um deus itifálico “Aquele que esconde as horas” ou “Aquele que destrói as horas” ambas as definições enfatizando o desaparecimento de fatias do tempo no oceano do tempo. Mais uma vez encontramos as 12 deusas das horas nocturnas que são procriadas pelo tempo. Outro texto deste livro define o desaparecimento do tempo: as horas que passaram “entram na escuridão sob as suas (i.e. Ré/Osíris) solas dos pés”, elas desaparecem na mais completa escuridão do “Lugar da Destruição” (Hetemyt), que é o lugar da reciclagem universal, incluindo o tempo.

Destas profundezas, as ”regiões mais baixas” do Além, as horas reaparecerão, rejuvenescidas, como o ano egípcio, renpet, que significa “o rejuvenescido”, renovado todos os anos como o sol o é diariamente. Aqui, pela primeira vez na História, vislumbramos a ideia de um ciclo vicioso (eterno retorno) tal como foi formulado mais tarde por Pitágoras e a sua escola. Mas a variante egípcia desta ideia é que se trata de um retorno alterado, sempre transformado em algo de novo. O Sol de cada alvorada é um novo Sol, “diariamente” em egípcio significa “cada Sol”.

O “Lugar de Destruição” no Além não é apenas um lugar de castigo, dissolução e inexistência, mas também de esperança, de uma permanente renovação do ser, do reacender da luz no meio da escuridão. E talvez nada mais que o mundo antes da criação, do qual o Sol emergiu no início dos tempos, uma vez que no Livro das Cavernas a descida diária do deus Sol é vista como um regresso a este mundo primordial, o lugar do seu primeiro nascimento.

O mundo antes da criação, antes do Sol, é um mundo sem tempo, Neheh e Djet nunca são usados como categorias neste mundo caótico, escuridão primordial ou oceano primordial Nun. Definem a duração total da existência no após-vida, duração idêntica à vida do deus Sol, Ré. O curso diário do Sol, atravessando o domínio dos mortos no Além e nunca terminando, garante um permanente retorno de vida, uma recriação do ser e por conseguinte também do tempo.

7 comentários:

  1. Gostei muito do texto que traduziu. Está muito interessante.

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  2. Boa, Jorge Mateus! foi um bom trabalho, que presumo ter sido complicado de fazer. São conceitos algo complicados, mas que estão entranhados nos antigos egípcios.
    Agora percebo como foram explicados os 5 dias extra, para além dos 360 dias comuns (12 meses de 30 dias= 360 dias)

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  3. Muito interessante Jorge, o difícil nestas coisas está na tendência, quase inevitável, que temos todos, mesmo os mais "avisados", de olhar para fora da nossa cultura, de alguma forma estamos toldados pelo etnocentrismo. Aqui impõe-se mudar de padrão, pensar à maneira egípcia, mas para isso, é necessário saber muito bem o que eles pensavam..

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  4. O texto publicado pelo nosso amigo Jorge Mateus, a partir de um artigo do egiptólogo alemão Erik Hornung (que já esteve duas vezes em Portugal) é muito útil para propiciar a apreensão do tema e o seu debate. A imagem que o acompanha é que talvez merecesse um tratamento estético-gráfico mais atraente de «corte e costura».

    Haveria entretanto que emendar algumas palavras para que fiquem bem, como aqui se propõe: faltam acentos em Meriré e em Ramsés, mas há um acento a mais em Egipto (no título), é Uenamon e não «Wenamu», fica mais correcto «Livro das Portas» e não dos «Portões», é renpet (nome do ano em egípcio) e não «Repnet», mais vale escrever capítulo (ou abreviar com cap.) do que «ch.» que não é português, os adjectivos egípcio e egípcia não precisam de ir com inicial maiúscula.

    Por outro lado, a expressão «jogo de damas» induz em erro, dado que não existia no antigo Egipto, ficaria melhor o jogo do senet (cujas regras ainda não se conhecem ao certo).

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  5. Gostei muito do seu post, escriba Jorge Mateus...tema fascinante este.
    A este propósito recordo uma conferência do nosso Professor Araújo sobre o "Tempo quotidiano e tempo eterno", numa sessão no Teatro Maria Matos mesmo aqui ao pé de casa. Tenho uma preciosa folhinha de apoio, alguém está interessado em fotocópias?

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  6. Eu, eu, eu estou, já não sei onde está a minha. Já nem me lembrava dessa conferência, deve ter sido no Império Antigo...

    Ah, já me lembro, foi antes de partirmos para a nossa viagem da Páscoa ao Egipto, nessa altura ainda não conhecia a Teresa e o Paulo... Estavam lá?

    Mas a nossa prendada escriba Teresa vai a todas!!!

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  7. Obrigado Professor pelas ajudas, não sabia que o jogo era senet, nem que o viajante a Biblos era Uenamon. Inestimável colaboração a sua. Também, graças à Teresa coloquei uma imagem bem melhor. É a maet, só pode ser.

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